quarta-feira, 30 de junho de 2021

JUNINAS: MEMORIAS DE UMA BRINCANTE

Lá pras bandas do Sertão do Ceará
Vivi a emoção de participar
do maior festejo
que acontecia todos os anos naquele lugar.
Fácil nunca foi, mas tudo melhorava
quando do festejo participava.
Todo ano era a mesma coisa,
tudo começava na plantação
 a gente se acordava muito cedo,
mas nenhum dia era em vão.
Todo dia eu pensava:
acorda Maria Bonita
 levanta vai fazer o café
 que o dia já vem raiando
e a poliça já tá de pé...
 e assim amanhecia.
A madeira acendia o fogão a lenha
e já começávamos a preparar o café
era muita coisa gostosa
depois saiamos para trabalhar
como custava passar o dia, mas que agonia
não via a hora da noite chegar,
pois eu só pensava em ir para a quadra ensaiar
porque sempre soube que ali era o meu lugar.
Todos lá se reuniam para cantar, tocar e dançar
não vou mentir, era muito cansativo, mas valia totalmente a pena,
pois só de ouvir aquela música tocar e o puxador gritar
enchia o coração, que transbordava de emoção
de encantos mil, a gente fazia do dia 13 ao dia 29 de junho
o maior São João do sertão
quando aos ouvidos chegava:  anavantu, anarriê, Olha a Cobra, Olha a chuva
os pés respondiam sem demora,
e os passos vinham como ondas mundo a fora
a gente só faltava se acabar de tanto dançar.
Às vezes, era preciso muito repetir,
mas com o tempo e a continuidade a leveza vinha
e sem precisar os passos decorar
sem dificuldades os pês conseguiam interpretar
 e assim dançávamos o que fosse preciso para fazer nosso arraiá.
A colheita sendo boa ou ruim não importava,
pois é preciso agradecer para poder continuar
aquele que guarda mágoa no coração
não sabe o mal que está fazendo a si e ao próximo
tudo em vão,
porque nem que o lucro fosse pouco
íamos dançar e cantar para todo aquele povo
com amor no coração
levar de tudo um pouco.
A rotina de ensaio era pesada
ensaiávamos muito naquela quadra
Todas aquelas músicas que a gente ia dançar
E não cansávamos de escutar
Com a filha de João Antônio ia se casar
mas Pedro fugiu com a noiva na hora de ir para o altar...
Não podíamos fazer feio
com os três Santos do mês,
pois a graça sempre era atendida
e assim, as bençãos para o ano inteiro estava garantida.
E quanto mais se aproximava o dia,
mais eu transbordava de alegria,
sabendo que eu iria mostrar
tudo que aprendi naquele lugar,
pois dançar é minha vida
não tenho nem palavras para dizer
como as quadrilhas preencheram o meu viver.
Guardo todo dinheiro para comprar o vestido rodado
a maquiagem e os enfeites que usarei no dia marcado
todo ano é mesma coisa
é aquela gastação,
pois não podemos repetir o repertório
se não era aquele falatório
era maria chiquinha, laços bonitos e vestido rodado
de cara muito pintada
nem parecia uma jovem Donzela
que esperava dia de Santo Antônio
para arrumar um par pra ela
e quando não conseguia
era aquele desalento,
pois já começava de novo todo aquele tormento.
Mais um ano encalhada
tecendo sonhos de arrumar um casamento
quem sabe para o ano que vem
que os anjos digam amém.
De minha parte não pretendia casar tão cedo.
Entretanto, pensar não arranca pedaço
o futuro a Deus pertence,
então porque não aproveitar o arraiar
pra pedir a Santo Antônio
pra me ajudar a desencalhar.
Afinal, não queria ficar moça velha
como muitos diziam por lá,
pois elas vivam a lamentar,
mas também quem não mandou nas superstições acreditar
o que custava colocar a aliança no copo, o nome na ponta do lençol,
enfiar a faca na bananeira ou pular muita fogueira.
Faça chuva ou faça sol é preciso acreditar,
pois a fogueira em tempos de outrora
foi acesa pela mãe de São João Batista,
que veio avisar Maria, mãe de Jesus,
que seu filho estava vindo
para mais tarde o Cristo nas águas mergulhar.
E desde então virou tradição
Inicia com o santo casamenteiro e fecha com são Pedro,
o porteiro,
Que as chaves do céu recebeu,
para findar a maior festa do Ceará.
e dá início a um novo ciclo
que é esperar o próximo ano
para as homenagens recomeçar.
Mas voltando as quadrilhas,
então é chegado o dia.
O relógio era o galo cantar
Que anunciava que o dia apenas começava
Com o facão e a enxada na mão
Partíamos para a plantação
mal parávamos para a marmita comer,
pois o pensamento estava no que ia acontecer
e quando já era à tardinha
correndo eu me ia
batendo o pé na bunda em direção ao galpão
que a igreja sedia para a gente se arrumar,
pois chegavamos lá parecendo uma maltrapilha
com a roupa toda amassada
a maquiagem borrada e o cabelo que até parecia
que a muito tempo pente não via,
era uma confusão
todos juntos
 homens e mulheres gritavam:
me empresta isso,  
eu tenho aquilo,
o que você vai querer?
Um perguntava aos outros,
 pois a comunhão reforçava o que estávamos prestes a viver
 ficava logo arrepiada.
Não me importo de emprestar
só quero que minhas coisas devolvam
 porque outros dias virão
e a gente precisava de mais arrumação.
E íamos todos para porta esperar
o puxador, seu Zé Vicente, no meio da quadra anunciar
pra toda população que já ia começar
A Quadrilha intitulada Dona Raimunda
Que nasceu, viveu e morreu naquele lugar.
Podem se chegar, pois vai começar
a maior quadrilha do festival do Ceará
e assim começava a música
mais linda que já ouvi tocar
então, começava a dançar.
As pernas pareciam ter vida própria,
pois enquanto a música estava a rolar
eu continuava alto a cantar
Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo...
 Além dessas
muitas outras,
 porque só uma não dá não
são muitos passos a fazer anavatu e anarrie.
E assim a galera que estava assistindo ia a loucura
Cantando, brincando e olhando
a quadrilha que ia passando
e assim vamos conquistando os futuros brincantes
 meninos e meninas,
 jovens e adolescentes
toda a sorte de gente
que queiram assumir o nosso lugar
quando não pudermos mais dançar.
Afinal, a tradição não pode morrer
e nem permitir da quadrilha esquecer.
Afinal, ela é o símbolo do nosso viver,
mas pensa que termina por aí
que nada
na praça da matriz
segue a festa na quermesse que era um chamariz.
Quando chegávamos lá,
a festa já estava armada.
Aqueles que não iam para roça e que ficavam em casa
ajudava a preparar o baião, o bolo de milho e a cocada
para vender tudinho e ajuntar um dinheirinho
para ajudar nas obras de caridade
que o povo do sertão tanto precisava,
pois o pouco com Deus é muito
e o muito sem Deus é nada.
Esse é o lema que carregamos por toda a caminhada,
pois fora da caridade não há salvação.
Não é pensando em recompensa,
mas um lugarzinho reservado no céu é uma benção,
mas de verdade o intuito além de ajudar
era os três Santos homenagear,
que nos vale o ano inteiro
e não fazemos por obrigação,
mas por ter o coração repleto de gratidão.
E ainda faltou falar do correio do amor
que ao som do triângulo, da sanfona e da zabumba tocava Luiz Gonzaga. 
E assim, o cupido ia laçando os corações apaixonados,
juntando casais que, às vezes, nem pareciam destinados,
mas dava tão certo que formavam uma família
que nem sempre era perfeita, mas como a minha
abençoada por São Pedro,  Santo Antônio e São João
me trouxeram nessa encarnação
um mar de memórias de amor, fé e tradição.