Personagens:
Maria de Lourdes da Costa, idosa de mais de 80 anos, de cabelos grisalhos, vestido típico de senhorinha do interior, de tecido leve, florido, mangas curtas e dois bolsos na frente.
Narrador
Figurantes
CENA 1: poema de introdução
Maria de Lourdes da Costa, idosa de mais de 80 anos, de cabelos grisalhos, vestido típico de senhorinha do interior, de tecido leve, florido, mangas curtas e dois bolsos na frente.
Narrador
Figurantes
A cena se inicia com o poema a seguir. Ele será
ouvido por todos, narrado por uma voz em off, enquanto isso serão projetadas,
fotos do lugar antes da inundação.
Uma mudança definitiva
dolorida
cansada
cheia de saudades
lotada de recordações
teimosa de se realizar
em cada gesto que podia ser o simples e último corte cabelo dali
o dormir sobre o pano verde do cassino
que já não mantinha mais seus jogadores
as conversas das calçadas
o desmontar das casas abandonadas
a solidão de ruas e becos
o arrumar dos caminhões de mudanças
tudo, tudo enfim
era o exercício doloroso
de saber que nunca mais vai se voltar ali
porque o ali nunca mais vai existir.
dolorida
cansada
cheia de saudades
lotada de recordações
teimosa de se realizar
em cada gesto que podia ser o simples e último corte cabelo dali
o dormir sobre o pano verde do cassino
que já não mantinha mais seus jogadores
as conversas das calçadas
o desmontar das casas abandonadas
a solidão de ruas e becos
o arrumar dos caminhões de mudanças
tudo, tudo enfim
era o exercício doloroso
de saber que nunca mais vai se voltar ali
porque o ali nunca mais vai existir.
CENA 2:
Passagens de atores pelo palco, como se fosse a rua, de crianças brincando, vizinhos conversando, pessoas passando para ir à mercearia, crianças indo à escola...
Nesse entremeio, entra em cena Maria de Lourdes da Costa com um caminhar lento, apoiado em uma bengala que lhe ajuda na locomoção. Sai de dentro de casa em direção a calçada, onde se encontra uma cadeira de balanço à sua espera como é de costume nas tardes daquele lugar.
NARRADOR: É sempre no mesmo horário, por volta das 15h, pois essa é a hora de ir à padaria comprar o pão, para a merenda da tarde. Quem passa em frente às casas nesse horário sente o cheiro do café novinho que está sendo feito. Como de costume, Dona Maria senta-se e espera que tragam sua merenda. Depois que acaba o café, ela pega o pacote de fumo e começa a mascar. Costume antigo, que não faz bem a sua saúde, mas ela diz que é muito tarde para parar agora.
Narrador atravessa o palco
Contudo, sua permanência na frente de casa, todos os dias, faz-lhe bem porque não falta gente para conversar. Uma pessoa passa e pergunta como anda a vida. Outro fala de algum caso ocorrido consigo. Ainda outro, fofoca de algo ocorrido com a filha de alguém e assim, a doce senhora vai se situando da vida daquele lugar. Lugar que ela não reconhece como seu. O costume diário vem de longe, tanto dos anos vividos, como do lugar ao qual outrora pertenceu, mas, atualmente, não pertence mais. E é nesse clima de recordação que a todo instante, nas conversas que vão e vem, ela narra suas histórias sobre o lugar que habita seu coração e dilacera o seu ser, por saber que nele nunca mais pisará.
NARRADOR: Assim, Dona Maria vai emendando as lembranças em narrativas que vai contando a quem chega e se faz demorar um pouco. Muitos vem sentar-se junto dela justamente para ouvi-la, pois seu saudosismo é contagiante e através de suas memórias, os outros podiam também chorar suas tristezas.
Maria de Lourdes da Costa: Jaguaribara, nome indígena que significa Moradores do Rio das Onças, lugar de cabra macho e mulheres ferozes, trabalhadoras e decididas. A minha cidade foi palco do maior embate ocorrido no Ceará, entre as tropas imperiais e os componentes da Confederação do Equador que lutaram por um Nordeste independente. Por ocasião deste embate, realizado as margens do Rio Jaguaribe, resultou na captura e assassinato de Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, Presidente da Confederação do Estado do Ceará. Anos depois, levantaram um monumento para ele, no lugar do seu último leito. Isso é só mais uma prova de que ser cearense é padecer sobre a terra e ser jaguaribarense é matar um leão por dia.
(Pausa)
A minha família fez pouso nesse lugar sem um tostão no bolso, sem ter o que comer e nem beber. Vinham de longe, buscando um lugar para se fixar, quando chegaram a Jaguaribara ainda no século XIX. meus avós estavam atrás de trabalho em troca de comida com uma reca de filhos, entre eles minha mãe, a caçula das mulheres. Eram 13 irmãos, depois dela ainda tinha dois meninos macho. E ali encontraram uma alma caridosa que deu trabalho e abrigo para todos.
Nem sempre foram flores. Por volta de 1930 aconteceu algo muito grave no estrangeiro, alguma coisa caiu, não me recordo agora, mas vi muitos fazendeiros ricos perderem tudo, alguns até se mataram por não poder pagar suas dívidas, porque homem de palavra não precisa de uma assinatura para quitar suas dívidas, a palavra dada, basta. E por conta desse acontecimento, os filhos do dono da terra que era de minha família disse que teríamos que sair. Meus tios, junto com meu avô disseram que não sairíamos. Eu os via sempre armados, mas como era criança não entendia que tudo aquilo era em defesa do nosso lar, nunca esqueci da cena do meu avô armado dizendo que só sairia dali morto. Foi nesse momento que entendi o valor que aquelas terras tinham para nós.
(Pausa)
- Por vezes, ouvi disparos, mas ninguém morreu e como viram que só sairíamos dali mortos, a contra gosto, deram o caso por encerrado. Depois disso, conseguimos comprar mais umas terrinhas, visto que a família só crescia e minha mãe queria que ficássemos sempre juntos. Ela dizia que não nasceu em Jaguaribara, mas a amava tanto que era onde queria enterrar seu coração, para nunca mais sair dali. Se viva fosse, teria morrido de desgosto.
(Pausa)
- Um dia, um dos meus irmãos foi acusado de ter feito mal a uma moça. Ela jurou de pé junto que tinha sido ele. E ele por outro lado, dizia que não tinha feio nada de errado. Foi surrado pela população e preso. Não aguentou a humilhação de ver sua vida sendo ceifada por uma mentira. Enforcou-se na cadeia. E o padre, quando chamado para encomendar a alma dele, falou que não poderia fazer isso, porque ele havia tirado a própria vida. As mulheres da nossa família eram muito devotas e frequentávamos a igreja assiduamente, sempre participávamos de tudo, éramos liderança. Diante da recusa, puxei o coro, se o padre não fizesse tudo como manda o figurino não contaria mais com a nossa ajuda e para além disso, teria em nós inimigas mortais, e isso não seria um bom negócio. O pároco ainda quis argumentar, mas não aguentou pressão e cedeu. Passado a missa de sétimo dia, a moça confessou que tudo não passara de uma mentira.
- Meu irmão era um homem muito vistoso, inteligente, amoroso, nunca vou esquecê-lo.
(Pausa)
- Uma vida longa te permite ter histórias para dar, vender e trocar. Mas foi no ano de 1985, que a pior delas começou a ser escrita. Com a chegada das notícias que vinham de mansinho, o tempo começou a mudar, os ânimos a se alterar e meus olhos a nublar. Eu sabia que era grave, mas nunca imaginei que morreria em vida, que teria que deixar para traz o néctar da minha existência.
NARRADOR: Notícias urgentes. Hoje, o planeta amanhece de luto. Aconteceu agora a pouco nos Estados Unidos da América. Dois aviões atingiram dois prédios enormes, matando cerca de 3mil pessoas. Dizem que foi um ato terrorista. Continuem com a gente, que iremos atualizando os fatos.
A luz vai fechando na protagonista, enquanto o poema começa a ser lido. Depois são mostradas imagens da água invadindo a cidade.
pensar rubrica
E as lágrimas que rolam em sua face começam a cessar
e sua voz cada vez mais longínqua a escutar.
É como se ela estivesse vendo a água a inundar
a cidade que outrora foi seu lar
Vem arrastando tudo que encontra pela frente
invadindo ruas, casas e praças
deixando submersa a história de tanta gente.
E é com esse saudosismo
que Dona Maria deixa a gente
e volta a viver no lugar em que nasceu
e que a contra gosto deixou para traz
mais repetindo sempre
que em Jaguaribara seria sua última morada
e seu pedido foi atendido
Para lá retornou
depois do último suspiro.
Ouve-se o áudio de uma notícia verídica: “Com a seca no Ceará, ruínas de cidade submersa reaparecem”. (G1 Ceará)
Dona Maria tinha razão. Tudo foi apenas para desterrá-la.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/jaguaribara/historico
https://www.youtube.com/watch?v=I9TyRzJMGFQ
https://www.youtube.com/watch?v=n_G5UquvgPY
http://g1.globo.com/ceara/noticia/2013/04/com-seca-no-ceara-ruinas-de-cidade-submersa-reaparecem.html
Escrita por Maria Cláudia Costa